A justiça do Cristão: fidelidade no casamento

A terceira antítese (sobre o divórcio) é uma sequência natural da segunda (sobre o adultério). Pois, em determinadas circunstâncias, Jesus diz agora, um novo casamento de uma pessoa divorciada, ou com uma pessoa divorciada, é equivalente a adultério. Esta terceira antítese é essencialmente um chamamento à fidelidade matrimonial.

Confesso minha relutância básica em tentar fazer a exposição destes versículos. Parcialmente porque o divórcio é um assunto complexo e controvertido, mas muito mais porque é um assunto que afeta profundamente as emoções das pessoas. Pode­ dizer que talvez não haja infelicidade tão pungente quanto a de um casamento infeliz. Talvez não haja tragédia maior que a degeneração, numa separação de amargura, discórdia e desespero, do relacionamento que Deus pretendia que fosse cheio de amor e satisfação. Embora eu creia que o caminho divino, em muitos casos, não é o divórcio, espero escrever com sensibilidade, pois conheço a dor de muitos e não desejo contribuir ainda para o seu desespero. Mas, como estou convencido de que o ensinamento de Jesus sobre este assunto, como sobre qualquer outro, é bom, intrinsecamente bom, tanto para cada indivíduo como para a sociedade, encho-me de coragem para escrever.

1. A fidelidade no casamento (vs. 31, 32)

Também foi dito: Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. Eu, porém, vos digo: Qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de adultério, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada, comete adultério.

Estes dois versículos dificilmente poderiam ser considerados como a totalidade das instruções dadas por nosso Senhor a respeito do divórcio, ali no monte. Parece serem um sumário abreviado dos seus ensinamentos, dos quais Mateus registra uma versão mais completa no capítulo 19. É melhor reunir as duas passagens para interpretar a mais curta à luz da mais longa. Foi assim que, mais tarde, aconteceu o debate de Cristo com os fariseus:

19:3-9 Vieram a ele alguns fariseus, e o experimentavam, perguntando: É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo? Então respondeu ele: Não tendes lido que o Criador desde o princípio os fez homem é mulher, é que disse: Por esta causa deixará o homem pai é mãe, é sé unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne? De modo que já não são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. Replicaram-lhe: Por que mandou então Moisés dar carta de divórcio é repudiar? Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres; entretanto, não foi assim desde o princípio. Eu, porém, vos digo: Quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, é casar com outra, comete adultério.

Sabemos que havia uma controvérsia sobre o divórcio entre as duas escolas rabínicas rivais de Hillel e de Shammai. O Rabi Shammai adotava uma linha rigorosa e ensinava, com base em Deuteronômio 24:1, que a única base para o divórcio era grave ofensa matrimonial, algo evidentemente “impróprio” ou “indecente”. O Rabi Hillel, por outro lado, defendia um ponto de vista muito relaxado. Se é que podemos confiar no historiador judeu Josefo, esta era a atitude comum, pois ele aplicava a provisão mosaica a um homem que “deseja divorciar-se de sua esposa por qualquer motivo”.[1] Do mesmo modo, Hillel, argumentando que a base para o divórcio era alguma coisa “imprópria”, interpretava este termo da maneira mais ampla possível para incluir as mais triviais ofensas de uma esposa. Se ela se mostrasse uma cozinheira incompetente e queimasse o jantar do marido, ou se ele perdesse o interesse nela por causa da sua falta de atrativos ou porque se apaixonasse por alguma outra mulher mais bonita, estas coisas eram “impróprias” e justificavam o seu divórcio. Parece que os fariseus se sentiam atraídos pela frouxidão do Rabi Hillel, o que explica a forma de sua pergunta: “É lícito ao marido repudiar sua mulher por qualquer motivo?” [2] Em outras palavras, queriam saber de que lado Jesus se punha nessa questão contemporânea, e se ele pertencia à escola do rigor ou à da frouxidão.

A resposta de nosso Senhor a essa pergunta foi dada em três partes. Convém considerá-las separadamente e na ordem em que ele as enunciou. Em cada uma delas discordou dos fariseus:

a. Os fariseus estavam preocupados com os motivos para o divórcio; Jesus, com a instituição do casamento.

A pergunta deles foi estruturada de tal forma a induzir Jesus a declarar o que ele considerava ser motivo justo para o divórcio. Por quais motivos poderia um homem divorciar-se de sua esposa? Por um só motivo, por diversos motivos, ou por nenhum motivo?

A resposta de Jesus não foi uma resposta. Ele recusou-se a responder à pergunta deles. Em lugar disso, fez uma contra­pergunta sobre o que tinham lido nas Escrituras. Ele reportou-os ao livro de Gênesis, tanto à criação do homem, feito macho e fêmea (no capítulo 1) como também à instituição do casamento (no capítulo 2), através do qual o homem deixa seus pais e se une à sua esposa para se tornarem um só. Esta definição bíblica implica em dizer que o casamento é exclusivo (“o homem...sua mulher”) e permanente (“se unirá” à sua mulher). Foram estes dois aspectos do casamento que Jesus selecionou para enfatizar em seu comentário (v. 6). Primeiro, “de modo que já não são mais dois, porém uma só carne” e, em segundo lugar, “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem”. Assim, o casamento, segundo a exposição que nosso Senhor fez de suas origens, é uma instituição divina, pela qual Deus transforma permanentemente, em uma, duas pessoas que decidida e publicamente tenham deixado os seus pais a fim de formar uma nova célula da sociedade; então, tornam-se “uma só carne”.

b. Os fariseus diziam que a provisão de Moisés para o divórcio era um mandamento; Jesus chamou-o de concessão à dureza dos corações humanos

Os fariseus responderam à exposição de Jesus sobre a instituição do casamento e sua permanência com a pergunta: “Por que mandou então Moisés dar carta de divórcio e repudiar?” [3] A citação que Jesus fez dos ensinos dos escribas no Sermão do Monte foi semelhante: “Também foi dito: Qualquer que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio”. [4]

Ambas eram versões truncadas da provisão mosaica, descaso típico dos fariseus pelo que as Escrituras realmente diziam e seu significado. Eles enfatizavam a concessão de um certificado de divórcio, como se essa fosse a parte mais importante da provisão mosaica, e então se referiam a ambos, o certificado e o divórcio, como “mandamentos” de Moisés.

Uma leitura cuidadosa de Deuteronônio 24:1-4 revela algo bem diferente. Para começar, todo o parágrafo dependia de uma longa série de cláusulas condicionais. Isto fica explícito na seguinte paráfrase: “Depois que um homem se casar com uma mulher, se ele descobrir nela algo indecente, e se ele lhe der um certificado de divórcio e divorciar-se dela e ela for embora, e se ela casar-se novamente, e se o seu segundo marido também lhe der uma certidão de divórcio e divorciar-se dela, ou se o seu segundo marido morrer, então o seu primeiro marido que se divorciou dela fica proibido de casar-se novamente com ela ...”. A força da passagem está na proibição do novo casamento com a companheira da qual alguém se divorciou. O motivo deste regulamento é obscuro. Talvez seja porque se a “indecência” dela era tão “desonrosa” que constituiu motivo suficiente para o divórcio, também seria motivo suficiente para não aceitá-la de volta. Também pode ter a intenção de advertir o marido contra uma decisão apressada, pois uma vez tomada não pode ser rescindida, e assim proteger a esposa contra explorações. Para nosso propósito, basta observar que esta proibição é a única ordem de toda a passagem; naturalmente não há ordem alguma para o marido divorciar-se de sua esposa, nem qualquer incentivo para que o faça. Tudo o que temos, por outro lado, é uma referência a certos procedimentos necessários se o divórcio acontecer; e, conseqüentemente, uma permissão muito relutante fica implícita e uma prática costumeira é tolerada.

Como, então, Jesus respondeu à pergunta dos fariseus sobre a regulamentação de Moisés? Ele a atribuiu à dureza dos corações das pessoas. Fazendo assim, não negou que a regulamentação vinha de Deus. Deu a entender, entretanto, que não era uma instrução divina, mas apenas uma concessão de Deus por causa da fraqueza humana. Foi por isso que “Moisés vos permitiu repudiar...”, disse ele (v. 8). Mas, então, imediatamente referiu-se de novo ao propósito original de Deus, dizendo: “Entretanto, não foi assim desde o princípio”. Assim, até mesmo a própria concessão divina era, em princípio, incoerente com a divina instituição.

c. Os fariseus tratavam o divórcio com leviandade; Jesus o considerou tão seriamente que, com uma única exceção, chamou a todo novo casamento depois do divórcio de adultério

Esta foi a conclusão da sua discussão com os fariseus, e isto é o que se registrou no Sermão do Monte. Talvez seja conveniente ver os seus dois argumentos conjuntamente.

5:32 Eu, porém, vos digo: Qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada, comete adultério.
19:9 Eu, porém, vos digo: Quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra, comete adultério.

Parece que se presume que o divórcio levava ao novo casamento das partes divorciadas. Só esta presunção explica a declaração de que um homem que se divorcia de sua esposa sem motivo “a expõe a tornar-se adúltera”. Sua ação teria tal resultado apenas se ela se casasse novamente. Além disso, uma separação sem divórcio - em termos legais, a mensa et toro (de mesa e cama) mas não a vinculo (dos laços matrimoniais) - é um arranjo moderno desconhecido no mundo antigo.

Considerando que Deus instituiu o casamento como uma união exclusiva e permanente, uma união que ele faz e que o homem não deve quebrar, Jesus chega à inevitável conclusão de que divorciar-se de um parceiro e casar-se com outro, ou casar-se com uma pessoa divorciada, é assumir um relacionamento proibido, adúltero, pois a pessoa, que conseguiu um divórcio aos olhos da lei humana, ainda está casada, aos olhos de Deus, com o seu primeiro parceiro.

Apenas uma única exceção foi feita a este princípio: exceto em caso de relações sexuais ilícitas (5:32) ou sendo por causa de relações sexuais ilícitas (19:9). A chamada “cláusula de exceção” é um enigma muito conhecido. Os comentaristas não são unânimes quanto à sua autenticidade ou quanto ao seu significado.

Em primeiro lugar, esta cláusula é autêntica. Eu gostaria de argumentar, como o fazem quase todos os comentaristas conservadores, que temos de aceitar esta cláusula não só como parte genuína do Evangelho de Mateus (pois nenhum manuscrito a omite), mas também como palavra autêntica de Jesus. O motivo por que muitos a rejeitaram, considerando-a como uma interpolação de Mateus, é que está ausente de passagens paralelas nos evangelhos de Marcos e Lucas. Mas Plummer estava certo quando taxou de “hipótese violenta” [5] essa rejeição apressada da cláusula de exceção, considerando-a um acréscimo editorial. Parece muito mais provável que a sua ausência em Marcos e Lucas deve-se não à ignorância deles, mas por pressuporem que esta cláusula fosse assunto do conhecimento de todos. Afinal de contas, sob a lei mosaica o adultério era punido com a morte (embora a pena de morte para esta transgressão possivelmente tenha caído em desuso no tempo de Jesus)[6]; portanto, ninguém teria duvidado que a infidelidade conjugal fosse motivo para o divórcio. Até mesmo os rabinos rivais, Shammai e Hillel, concordavam com isso. Só discordavam quanto à amplitude com que esta expressão “alguma coisa indecente” em Deuteronômio 24:1 poderia ser interpretada.

A segunda dúvida sobre a cláusula de exceção refere-se ao que significa por causa de relações sexuais ilícitas, conforme traduz a Edição Revista e Atualizada. A palavra grega é porneia. Normalmente é traduzida por “fornicação”, indicando a imoralidade dos que não são casados, e freqüentemente distingue-se de moicheia (“adultério”), a imoralidade dos casados. Por causa disto, alguns têm argumentado que a cláusula de exceção permite o divórcio no caso de descobrir-se algum pecado sexual pré-marital. Alguns acham que “a coisa indecente” de Deuteronômio 24:1 tem o mesmo significado. Mas a palavra grega não é bastante precisa para ficar assim limitada. Porneia deriva de porne, prostituta, sem especificar se esta é casada ou solteira. Também não especifica o estado civil do seu cliente. Mais ainda, foi usada na Septuaginta referindo-se à infidelidade de Israel, a esposa de Jeová, conforme exemplificado em Gomer, esposa de Oséias. [7] Devemos, então, concordar com R. V. G. Tasker, que concluiu que porneia é um “termo abrangente, incluindo adultério, fornicação e perversão sexual”. [8] Ao mesmo tempo, não temos liberdade de cair no extremo oposto e argumentar que porneia abranja toda e qualquer ofensa que tenha de alguma forma até mesmo vaga, qualquer coisa a ver com o sexo. Isto seria praticamente o mesmo que igualar porneia com “incompatibilidade”, e não temos apoio etimológico para isso. Não; porneia significa “falta de castidade”, algum ato de imoralidade sexual física.

O que, então, Jesus ensinou? N. B. Stonehouse oferece uma boa paráfrase da primeira parte da antítese do Sermão do Monte: “Vocês ouviram a apelação dos mestres judeus sobre Deuteronômio 24:1, com a intenção de consubstanciar uma prática que permita aos maridos divorciar-se, livremente e a seu bel-prazer, de suas esposas, fornecendo-lhes simplesmente um estúpido documento legal de transação”. [9] “Mas eu digo a vocês”, continuou Jesus, que tal comportamento irresponsável da parte do marido fará com que ele, sua esposa e os novos parceiros tenham uniões que não constituem casamentos, mas adultérios. Neste princípio geral, temos uma exceção. A única situação em que o divórcio e o novo casamento são possíveis sem transgredir o sétimo mandamento é quando o casamento já foi quebrado por algum sério pecado sexual. Neste caso, e só neste caso, Jesus parece ter ensinado que o divórcio seria permissível, ou pelo menos poderia ser obtido sem que a parte inocente adquirisse mais tarde o estigma do adultério. A tendência moderna dos países ocidentais de estruturar a legislação para o divórcio com base, antes, na “separação irrecuperável” ou “morte” do casamento e não na “ofensa matrimonial” precisa de leis melhores e mais justas; não se pode dizer que seja compatível com os ensinamentos de Jesus.

Não obstante, o assunto não pode ser abandonado aqui, pois esta relutante permissão de Jesus continua precisando ser considerada pelo que é, a saber, uma acomodação sustentada por causa da dureza dos corações humanos. Além disso, deve-se sempre ler no contexto imediato (o endosso enfático de Cristo à permanência do casamento no propósito de Deus) e também no contexto mais amplo do Sermão do Monte e de toda a Bíblia, que proclama um evangelho de reconciliação. Não significa muito o fato de que o Amante Divino estivesse sempre pronto a atrair novamente Israel, sua esposa adúltera? [10] Portanto, que ninguém comece uma discussão sobre este assunto, indagando sobre a legitimidade do divórcio. Estar preocupado com os motivos para o divórcio é ser culpado daquele mesmo farisaísmo que Jesus condenou. Toda a sua ênfase na discussão com os rabinos foi positiva, isto é, foi colocada sobre a instituição original divina do casamento como um relacionamento exclusivo e permanente, no qual Deus junta duas pessoas numa união que nenhum homem pode interromper; e (é preciso acrescentar) ele enfatizou a sua ordem dada a seus seguidores para amarem-se e se perdoarem uns aos outros, e para serem pacificadores em cada situação de luta e discórdia. Crisóstomo reuniu, adequadamente, esta passagem às bem-aventuranças e comentou em sua homilia: “Pois aquele que é manso, pacificador, humilde de espírito e misericordioso, como poderia repudiar sua esposa? Aquele que está acostumado a reconciliar os outros, como poderia discordar daquela que é a sua própria carne?” [11] Com este ideal, propósito e chamamento divinos, o divórcio só pode ser considerado uma trágica deterioração.

Portanto, falando pessoalmente como pastor cristão, sempre que alguém me pede para conversar sobre o divórcio, já há alguns anos me recuso firmemente a fazê-lo. Adotei como regra não falar com ninguém sobre o divórcio, sem antes falar sobre dois outros assuntos, isto é, casamento e reconciliação. Às vezes, uma discussão destes tópicos torna desnecessária a outra. Finalmente, apenas depois de se ter compreendido e aceitado o ponto de vista divino do casamento e o chamamento divino à reconciliação, é que há a possibilidade de se criar um contexto dentro do qual se possa falar com pesar sobre o divórcio. Acho que este princípio de prioridades pastorais é coerente com os ensinamentos de Jesus. [12]

NOTAS:

[1] - Antiquities IV. viii. 23.
[2] - 19:3.
[3] - 19:7.
[4] - 5:31.
[5] - p. 82.
[6] - Dt 22:22; Jo 8:1-11. G. E. Ladd escreve: “O Velho Testamento condenou o adultério com a penalidade de morte. O Novo Testamento diz que um adúltero deve ser considerado como morto, e a parte inocente fica livre dos seus votos matrimoniais como se o seu cônjuge estivesse morto” - The Gospel of lhe Kingdom, (Eerdmans, 1959) p. 85.
[7] - Os 1:2,3; 2:2,4.
[8] - p. 146.
[9] - p. 203.
[10] - Jr 2:1; 3:1; 4:1; Os 2:1-23.
[11] - p. 260.
[12] - Para informações mais completas sobre o material bíblico veja Divorce: The Biblical Teaching. (Falcom, 1972).

Fonte: Monergismo
Autor: John Stott